Ele não ganhava salário, mas tinha quatro empregadas, um mordomo e um
secretário. "São a minha família", dizia. Acordava às 6h, tomava banho,
fazia a barba e se vestia de branco. Depois tomava café com a "família",
discutia a agenda do dia com seus assessores e, se não tivesse nenhuma
audiência marcada, estudava um pouco de teologia até a hora do almoço,
às 13h15. Fazia a siesta e voltava a estudar às 16h. O jantar era
cedinho, às 19h30. Aí era ver o noticiário da noite na TV e cama. Às
21h, já tinha dado boa noite para os funcionários e vestido o pijama.
Essa era a rotina de Bento 16. E no que depender de Francisco 1º, ela
vai ficar ainda mais simples.
O então cardeal Jorge Bergoglio fez
questão de pagar a conta do hotel onde se hospedou durante o conclave
e, uma vez eleito papa, não quis usar a cruz de ouro nem o papa-móvel.
Algo natural para um senhor que andava de metrô quando era arcebispo de
Buenos Aires. Amante do tango e torcedor fanático do San Lorenzo,
Francisco trouxe uma feição mais humana e bem-humorada ao papado que a
do autor de livros de teologia Joseph Ratzinger.
Mas de resto não
muda muita coisa: o novo papa já deixou claro que não conversa sobre
aborto, camisinha, sexo antes do casamento...
Mas parece que
falta combinar com os fiéis. O país com mais católicos no mundo é um
vizinho da terra natal do papa chamado Brasil. Nesse país existe um
instituto de pesquisa chamado Ibope. Em 2007, ele auferiu que 96% dos
jovens que se dizem católicos são a favor do uso da camisinha. Entre
toda a população de 18 a 29 anos, esse índice de aprovação é de 95%. Ou
seja: ainda que dentro da margem de erro, os católicos tendem a ser mais
a favor da camisinha. Quem puxa a média para baixo são os evangélicos,
com "só" 92% de aprovação ao contraceptivo. A mesma pesquisa mostra que
os católicos mais jovens também têm opiniões divergentes da Igreja em
relação a outros temas espinhosos, como o aborto.
Então caramba.
Se a opinião que o papa representa entra por um ouvido de seus fiéis e
sai pelo outro, para que ele serve? Para ser um popstar ligeiramente
mais velho que o Mick Jagger? Uma pessoa cujo principal trabalho é
acenar para multidões?
Bom, parte do trabalho de ser papa
consiste disso mesmo. Mas não fica nisso, claro. Por mais que certas
posições da Igreja não façam mais sentido no tempo e no espaço em que
seus seguidores vivem, o papel do homem que senta na Santa cadeira
continua relevante. Papel não. Papéis, já que o Sumo Pontífice encarna
vários personagens sob a mesma batina. E saber qual é cada um deles
ajuda a entender melhor a dimensão real de um papa.
Primeiro, o
mais banal desses papéis: o papa também é bispo. Ele é o responsável
pela diocese de Roma de forma tão direta quanto dom Odilo Scherer pela
de São Paulo. João Paulo 2º, por exemplo, passava as manhãs resolvendo
as demandas da diocese local, que hoje conta com 5.994 padres e 2,6
milhões de fiéis.
Na sua função mais conhecida, a de líder
supremo da Igreja Católica, o papa pode banir teólogos, canonizar beatos
e nomear cardeais. De quebra, também tem o emprego de chefe de Estado
do Vaticano - um enclave do tamanho de 52 campos de futebol no coração
de Roma. Ali , o papa atua como o último monarca absoluto da Europa. Ele
delega a administração a cardeais, mas pode mandar como bem entende nos
800 e poucos habitantes. Também dá as cartas em temas espirituais:
ninguém pode julgá-lo nem recorrer de suas decisões. Mas ampla mesmo é a
sua quarta missão: manter a paz entre a Igreja Católica, com seu 1,2
bilhão de fiéis, e as outras religiões - incluindo aí as outras
vertentes do cristianismo, que somam elas próprias outro bilhão de
seguidores.
João Paulo 2º levou isso a ferro e fogo: avançou no
intercâmbio com os ortodoxos e tentou construir laços com os
evangélicos. Foi também o primeiro papa a visitar uma sinagoga em Roma,
em 1986, e o primeiro a entrar numa mesquita, na Síria, em 2001. Tanto
fez que terminou o reinado como um superstar. Seu funeral, em 2005,
reuniu pelo menos 4 milhões de pessoas e contou com mais chefes de
Estado que qualquer outro evento fora da ONU.
Agora o papa
Francisco nem bem assumiu e já é pop. Tanta expectativa ao redor de uma
pessoa faz dela uma espécie de porta-voz da humanidade. As pessoas
esperam que ele opine sobre tudo, como um Caetano Veloso de batina, com a
diferença de que sua opinião se torna um fato global instantâneo. Em
1962, no auge da crise dos mísseis em Cuba, João 23 colocou panos frios
na disputa entre EUA e URSS com um discurso pela paz emitido pela Rádio
Vaticano. Em 1978, Chile e Argentina desistiram de guerrear por uma
disputa no Canal de Beagle graças à mediação de João Paulo 2º. O mesmo
papa ajudou a derrubar o comunismo na Polônia, seu país, dando apoio à
oposição e bloqueando o monopólio da informação do regime. As paróquias
polonesas distribuíam jornais clandestinos com informação sobre o que se
passava no mundo do outro lado da cortina de ferro. E o fim do regime
fechado na Polônia, em 1990, foi um dos marcos do fim da Guerra Fria.
Em
suma: o papa pode até não ser ouvido pelos próprios fiéis quando o
assunto é a vida particular deles. Mas às vezes influencia mais no
destino do mundo do que qualquer chefe de Estado. Se o chefe da Igreja
for um líder dinâmico e negociador, como foi João Paulo 2º, certamente
vai deixar um legado relevante. E o simpático e firme papa Francisco tem
tudo para isso. Buena suerte, Jorge.
(Matéria extraída da Revista Superinteressante)
Nenhum comentário:
Postar um comentário