Quem poderia imaginar que quatro PMs de uma
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) -- cuja proposta é justamente a de levar
segurança a áreas pobres -- fossem capazes de torturar até a morte um inocente,
com a cumplicidade dos superiores e a omissão de mais 21 policiais? Para
qualquer pessoa que tenha conhecido a banda podre da PM, como aconteceu com
Rodrigo Nogueira, carioca de 32 anos, o Caso Amarildo infelizmente não é
exceção. Entre 2005 e 2009, o soldado Rodrigo usou a farda, o distintivo e as
armas cedidas pela corporação para extorquir dinheiro de quem estivesse fora da
lei ao cruzar seu caminho, torturar traficantes, negociar e vender a liberdade
de perigosos assaltantes, julgar e condenar à morte criminosos e suspeitos de
crimes, participar de ações da milícia e matar a sangue-frio, sem piedade. Pela
primeira vez um ex-PM do Rio confessa publicamente ter cometido tamanhas atrocidades
e revela como funciona o esquema que corrompe praticamente toda a cadeia
hierárquica da corporação, do soldado ao coronel.
Para expiar sua culpa, Rodrigo criou um personagem, o soldado Rafael, o protagonista que narra em primeira pessoa "Como nascem os monstros -- A história de um ex-soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro" (Editora Topbooks), lançado mês passado. Qualquer semelhança com a realidade não é nenhuma coincidência. Depois que foi preso em novembro de 2009 na Unidade Prisional da PM -- condenado por tentativa de homicídio e de extorsão -- Rodrigo considerou uma missão revelar o sistema de uma das maiores corporações policiais do país, que está na berlinda por episódios como o de Amarildo ou por ter perdido o controle de manifestações que acontecem desde junho.
Para expiar sua culpa, Rodrigo criou um personagem, o soldado Rafael, o protagonista que narra em primeira pessoa "Como nascem os monstros -- A história de um ex-soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro" (Editora Topbooks), lançado mês passado. Qualquer semelhança com a realidade não é nenhuma coincidência. Depois que foi preso em novembro de 2009 na Unidade Prisional da PM -- condenado por tentativa de homicídio e de extorsão -- Rodrigo considerou uma missão revelar o sistema de uma das maiores corporações policiais do país, que está na berlinda por episódios como o de Amarildo ou por ter perdido o controle de manifestações que acontecem desde junho.
-- Alguém precisava dar real entendimento ao que acontece dentro dos quartéis da PMERJ, quais são os fatores que transformam homens comuns, pais de família, em assassinos alucinados e sem remorso, e isso só seria possível através do prisma de quem viveu no inferno e que já não tinha mais nada a perder. Não escrevo para ser reconhecido ou festejado, mas sim para que o nível de podridão da PMERJ seja escancarado de vez e de uma maneira que não tenha mais volta, para que todos os leitores abram os olhos e percebam que não passamos todos de uma reles massa de manobra de interesses muito mais terríveis e obscuros, que todos dias vendem morte e insegurança, para poder pedir seu voto de novo daqui a quatro anos -- afirma Rodrigo, em entrevista por carta, na qual não deixou de responder nenhuma das 42 perguntas.
Apesar de ter confessado vários crimes, o ex-PM Rodrigo Nogueira nega ter praticado justamente os crimes que o levaram a uma condenação total de 30 anos e oito meses de prisão, na esfera civil e militar. Ele foi condenado a partir do depoimento de uma vendedora ambulante, que acusou ele e um colega de terem tentado extorquir dinheiro dela e lhe dado um tiro no rosto, além de estuprá-la. O caso ganhou as páginas policiais em 2009. Por ironia, a mulher era a informante que havia ajudado o grupo de Rodrigo no plano de sequestro de um traficante, cuja liberdade custou R$ 250 mil além de cinco fuzis.
-- Não sei dizer especificamente quem foi o responsável pelo disparo que a atingiu, mas ela foi submetida a exame de corpo de delito que comprovou que ela não foi sofreu agressão sexual, como havia denunciado -- defende-se o ex-PM, acrescentando que foi condenado por 4 votos a 3 e não quis fazer do livro "um plenário" para sua defesa.
Nascido e criado numa área pobre de Nova Iguaçu, Rodrigo cursou a Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina, acreditando que ia participar de alguma guerra. Seu sonho era pegar em armas para defender a sociedade, e foi isso que acabou levando-o à Polícia Militar. O protagonista do livro inicia sua trajetória na PM como uma espécie de paladino da Justiça, realmente acreditando que iria "servir e proteger", como diz o slogan da corporação, copiado da polícias americanas. Aos poucos, a convivência com colegas mais experientes, entregues à rotina de violência, o transforma no que ele acreditava ser um combatente urbano, estimulado pela retórica da guerra, na qual policiais viram soldados e traficantes -- e até moradores de favelas -- os inimigos mortais. Recebe então a senha para saquear os territórios conquistados, como despojos de guerra, e eliminar pessoas a seu próprio julgamento, contribuindo para o círculo vicioso de violência que impregna as ações da polícia nas grandes cidades do país.
-- Rafael sente muito remorso pelos homicídios que cometeu, e isso fica bem claro na obra. É isto que mais me incomoda, tanto que a metamorfose só ocorre depois que ele mata a primeira vez -- observa o ex-PM escritor.
Apesar de ter conhecido a corporação em 2005, Rodrigo conclui que foi a ditadura de 64 quem usou a PM, no combate à subversão, pois foi quando, segundo ele, a força aprendeu a torturar, sequestrar, "embuchar" (forjar provas) e até matar com extrema eficiência e funcionalidade. Com a volta da democracia, diz ele, esses poderes deveriam ter sido extintos. "Mas nenhum general foi aos batalhões, nenhum curso de reciclagem foi formulado, nada. Enquanto as tropas do Exército recolhiam-se aos quartéis, quem é que continuou nas ruas? A PM. Tudo foi jogado em cima de homens semianalfabetos, mal-pagos e mal-preparados", afirma no livro, num dos raros momentos em que tenta justificar os erros praticados pelos policiais.
Segundo Rodrigo, o ódio ao bandido vai sendo construído já no Curso de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), em Marechal Hermes. "A animosidade do policial com relação ao bandido carioca é proveniente do mais puro revanchismo, e vice-versa. Esse ciclo de violência e morte se renova dia a dia, com a repetição de atos de barbárie de ambos os lados, mas sua origem é culpa do aparato estatal", afirma o soldado Rafael, no livro.
Mas o soldado Rafael perde de vez a ingenuidade e começa a metamorfose de ser humano para monstro depois de cometer o primeiro assassinato a sangue-frio. A vítima é um rapaz que fora atropelado e estava caído no chão, se arrastando e implorando por socorro. Minutos depois, os policiais constatam que era verdadeira a versão de um popular que avisara que tratava-se de um assaltante. O homem caído no chão fora atropelado por outro carro no exato momento em que tentava assaltar um motorista na Radial Oeste, na Zona Norte do Rio. Indefeso e todo arrebentado, o homem balbuciava algo, como se pedisse ajuda. Mas o soldado Rafael decidiu matá-lo e depois simular um tiroteio, como acontece em muitos casos forjados de autos de resistência -- o confronto armado com policiais. Em vez da pistola calibre 45 do assaltante, Rafael apresentou na delegacia uma pistola velha. Apesar da sensação de ter virado um monstro, com a execução sumária de um moribundo, Rodrigo vendeu a arma e dividiu o dinheiro com o colega de farda.
No livro, Rodrigo relata como vendeu também um fuzil AK-47 apreendido após confronto com traficantes do Morro do Borel, na Tijuca. Nesse tiroteio, dois bandidos foram fuzilados, depois de reagirem à patrulha de Rodrigo. O comprador foi um chefe de milícia. O matador do grupo, também conhecido como "quebrador", era um ex-PM, colega de turma de Rodrigo. Apesar de afirmar ter recusado convite para integrar aquela quadrilha, Rodrigo conta também como participou de ação da milícia contra um grupo de traficantes, cujo chefe foi degolado por um homem especialmente encarregado da ação, numa invasão minuciosamente planejada pelos milicianos. A ideia era mandar um recado aos traficantes: desistam desse território. Essa operação clandestina numa favela do Rio foi fruto de delação da namorada do bandido, cansada de humilhações e agressões. A mulata sestrosa tinha tudo do bom e do melhor na favela, mas o traficante não manifestava qualquer respeito por ela. Acabou sendo remunerado com a traição.
Além do cheiro de pólvora produzido pelos
relatos sem firulas, o livro “Como nascem os monstros” poderia funcionar como
uma espécie de manual da corrupção na Polícia Militar do Rio. Em nove meses,
Rodrigo escreveu o livro de 606 páginas, que chamou de romance não ficcional.
Rodrigo garante que, tirando um ou outro personagem ou características criadas
para esconder os personagens com os quais conviveu no dia a dia da PM, é tudo
verdade. O livro destrincha o esquema de corrupção que depende também de alguém
disposto a corromper o policial, seja um motorista pego sem habilitação, um
usuário de drogas detido logo após sair da boca de fumo ou um chefão do tráfico
vítima de um sequestro planejado por uma rara sociedade entre policiais civis e
militares. A pessoa é pega em flagrante e parte para o "desenrolo",
que na gíria do submundo significa a forma de se livrar de uma situação
incômoda.
-- O PM só vale o mal que pode causar – escreve
o soldado Rafael, que começou a carreira extorquindo o produto do roubo
praticado por pivetes e gangues de bicicleta e chegou a participar do sequestro
de um dos chefões do tráfico, que chamou de Rufinol e tem tudo para ser Rogério
Rios Mosqueira, o Roupinol. Era um dos maiores fornecedores de drogas do Rio e
dominou o Complexo de São Carlos, no Estácio, procedente de Macaé. Foi um dos
primeiros no Rio a montar pequenos laboratórios de refino de cocaína, o que
mostra que tinha contatos que trazem a pasta-base da droga, diretamente da
Bolívia e da Colômbia. Aliado de Nem da Rocinha, Roupinol foi morto em cerco da
Polícia Federal, em março de 2010.
O sequestro de Roupinol foi planejado a partir
de informações dadas por um X-9 (informante), com quem os policiais dividiam o
dinheiro arrecadado em operações clandestinas de combate ao tráfico, e mais
tarde se tornou justamente a denunciante dos crimes que levaram o soldado
Rodrigo à prisão.
-- Dentre todos os crimes que podem ser praticados
quando se está com a farda da PM o sequestro é, sem dúvida, um dos mais
maravilhosos – conta Rafael, o alter-ego do ex-PM Rodrigo Nogueira.
O livro explica que o bandido sequestrado pode
ficar horas dentro de um carro da polícia ou até mesmo num Destacamento de
Policiamento Ostensivo (DPO), o avô da UPP. No caso de os policiais bandidos
serem surpreendidos pela corregedoria eles podem alegar que não havia sequestro
algum e que, na verdade, a pessoa detida estava prestes a ser conduzida para a
delegacia de polícia. Só que a quadrilha que sequestrou o traficante não
conseguiu comprar todo mundo, a história acabou vazando e os envolvidos foram
sendo de alguma forma punidos, um a um.
Quando não conseguiam sequestrar um chefão,
policiais corruptos cobravam propinas do tráfico, pagas semanalmente,
diretamente aos agentes fardados e em carros da polícia, em plena luz do dia.
-- Depois de comprar um policial, o bandido se
sente um pouco dono dele – diz o soldado Rafael, demonstrando rara consciência
das consequências da corrupção para a atividade policial.
Segundo Rodrigo, alguns policiais ficam tão
submissos ao dinheiro do tráfico que, no batalhão de Bangu nos anos 1990, era
comum um famoso traficante desfilar pelas ruas da Vila Vintém fardado e a bordo
de uma das recém-chegadas blazer da PM. No São Carlos, os policiais tinham que
subir a ladeira com calça arregaçada até a altura dos joelhos, com o fuzil
cruzado nas costas, para mostrar que estavam arregados. Até um blindado, o
famoso caveirão, pode ser usado como arma de coação na hora de determinar
arregos a serem pagos, conta Rafael. Numa das histórias, Rafael conta como o
Grupo de Apoio Tático (GAT) do qual fazia parte invadiu uma favela, dominou o
local onde era feita a embalagem da droga e torturou barbaramente, com
crueldade ímpar, dois traficantes desarmados. Eles foram executados
sumariamente depois que se percebeu que não tinham informações que levassem aos
chefes da quadrilha. As torturas e execuções são descritas em detalhes, assim
como as medidas tomadas para se minimizar os riscos de uma perícia, por
exemplo, constatar que as mortes não foram em confronto.
Na entrevista, o ex-PM Rodrigo confessa que
raramente os policiais que liberam bandidos perigosos ou vendem armas para
traficantes avaliam o mal que estão causando à sociedade:
-- O policial que comete esse tipo de crime não
pensa nisso. Só o que importa é o lucro. É mais um sintoma da deformidade moral
adquirida, quando tudo se torna banal, explicável, lícito – diz Rodrigo, que
nega ter vendido armas para traficantes ou colocado em risco inocentes, com a
libertação de bandidos.
No livro, entretanto, relata a história de um
assaltante que estava na porta de um banco pronto para fazer uma “saidinha de
banco”, quando o PM Rafael o surpreendeu. Em vez de levá-lo preso, negociou e
vendeu sua liberdade. Deixou, portanto, solto um tipo de criminoso
frequentemente envolvido em latrocínio, roubo seguido de morte.
Embora não detalhe todos os casos, Rodrigo
revela no livro como o esquema de corrupção parece estar mesmo entranhado em
cada setor de um batalhão da PM. O cenário da roubalheira é a Tijuca, bairro de
classe média, na Zona Norte da cidade. Ele trabalhou no 6º BPM (Tijuca) e
mostra a estrutura que é montada para achacar cidadãos, comerciantes, suspeitos
e criminosos. Uma simples verificação de documento pode dar início a um processo
que se torna vantajoso para um policial que decide complementar a renda às
custas de propina. Segundo Rafael relata, tudo acontece com a cumplicidade e
até o estímulo de oficiais da unidade, que colocam os subordinados em
atividades estratégicas para a coleta do dinheiro. Em muitos casos, o serviço
tem uma taxa fixa e periódica, cobrada pelo oficial, que não quer nem saber
como o subordinado vai pagar o que foi combinado. É o trato que garante a
pecúnia extra e mantém o subordinado no lugar determinado para conseguir o
faturamento.
--- Eu cansei de dar dinheiro na mão de major,
capitão, tenente. Até para trabalhar em lugar melhor tem que pagar, senão o PM
fica baseado a noite toda lá na Conchinchina. E os coronéis pegam dinheiro de
tudo quanto é lugar. Tudo no batalhão gira em torno dele. É uma sujeirada sem
tamanho, chega a dar nojo – afirma Rodrigo.
A rádiopatrulha é um dos serviços mais
cobiçados pelos policiais porque é um dos poucos em que "não é o polícia
que corre atrás do dinheiro, mas é o dinheiro que vem até o polícia". São
os "ratrulheiros", como diz Rafael. Ele atribui a vantagem obtida
pelos policiais corruptos "à sempiterna tendência do carioca em querer se
dar bem", a velha Lei de Gérson.
-- Se um PM exige dinheiro por conta de uma
infração de trânsito que não existe ou ele é burro ou maluco -- diz Rodrigo,
acrescentando que jamais conheceu algum PM que cobrasse propina de alguém que
estivesse dentro da lei.
Com os estabelecimentos comerciais, uma
rádiopatrulha pode conseguir bons acordos para estar lá na hora do fechamento –
os “fechos”, que nada mais é do que o fornecimento de segurança particular com
o aparato estatal. Já as rondas escolar e bancária são coordenadas pelo comando
do batalhão, de acordo com seus próprios interesses. Mesmo no caso de
atendimento a mortes naturais, os PMs, a pretexto de orientar a família do
morto, fazem acertos para favorecer a funerária que vai lhe garantir a
“cerveja”.
No serviço de motocicleta, Rafael e um sargento
veterano tomaram muita propina de motoristas infratores até que um dia tentaram
extorquir dinheiro de um amigo do chefe do serviço. Aí o negócio babou. Rafael
lembra que o sargento era bem-humorado. Quando o motorista infrator lhe
oferecia um “café” para fazer vista grossa a alguma infração, o sargento dizia
que só tomava o Kopi Luwak, um australiano que custa mil dólares o quilo.
Indagado o que acha da situação com a Guarda Municipal cuidando do trânsito,
Rodrigo diz que "melhorou, mas ainda não é ideal".
-- Existem, sim, diversos casos de corrupção
envolvendo GM, porém está sendo como na época do BPTran (Batalhão de Polícia de
Trânsito). No começo, está todo mundo satisfeito, mas uma hora a merda vai
feder. Pode esperar -- afirma o ex-PM.
No Grupo de Ação Tática (GAT), uma mini-tropa
de elite do batalhão, conheceu policiais que estão sempre dispostos a combater
o crime visando principalmente os próprios bolsos. O destemor deles tem uma
função objetiva: atuar em operações clandestinas, como a que invadiu o Morro
dos Macacos pela mata e fuzilou sem anúncio um grupo de traficantes que estava
de plantão na boca. O líder do grupo era um sargento ferrabrás. Certa vez, ele
próprio foi se vingar de um desafeto e, sem querer, eliminou também a criança
que acompanhava o homem, num carro. Ficou muito tempo assombrado por esse
pequeno fantasma. Mais tarde foi executado por assaltantes na Avenida Dom
Hélder Câmara, diante de toda a família, na volta do jantar em que comemorara
sua aposentadoria da PM. Os criminosos desconfiaram que ele era policial. Era seu
último.
Ainda no 6º BPM, o soldado Rafael conta como
funcionava também o esquema do "morrinho", um dos mais bem
organizados planos de achaque a usuários de drogas da cidade, que se tem
notícia. O livro conta que teve muito policial que construiu sua casa com o
dinheiro extorquido de dependentes químicos, naquele golpe. Os policiais
montavam uma "campana" (vigilância) numa área vizinha ao Morro dos
Macaos, em Vila Isabel, de onde podiam observar, a uma distância segura, toda a
movimentação na boca de fumo do Morro da Mangueira, uma espécie de
"drive-thru" do tráfico. Segundo Rodrigo, frequentavam o local
celebridades, pagodeiros, advogados, "playboys", médicos e até mesmo
policiais Ali escolhiam os usuários de drogas que deixavam a favela em carros
importados e acionavam outra dupla de policiais que estavam num ponto
estratégico. Um dos casos que mais rendeu aos achacadores, contado em 12
páginas do livro, foi o de um empresário norueguês com negócios no Rio
acompanhado de uma loura, advogada, que pagou lição de moral para os PMs até
que se descobriu o que o estrangeiro guardava na cueca -- papelotes de cocaína.
Num só "bote" os PMs arrecadaram R$ 10 mil mais US$ 2.500. O dinheiro
foi pago no belo apartamento da advogada, em São Conrado, onde os policiais assaltaram
até a geladeira da vítima.
-- Policial tem que ganhar bem. Não para
enriquecer, mas para poder pagar uma faculdade, ou a escola dos filhos; as
prestações de um carro e o financiamento de uma casa. É claro que não importa o
valor do salário sempre haverá alguém propenso à corrupção -- nossos queridos
políticos estão aí e não me deixam mentir. Entretanto acho difícil encontrar um
policial que se arriscaria perder a farda e um salário de R$ 4 mil por um
amarrado de queijo apenas ou por uma bacia com peixes, como já vi acontecer.
Com efeito, se a carreira oferecesse um salário razoável, atrairia uma parcela
mais selecionada de interessados no concurso, o que elevaria o nível cultural e
social dos candidatos -- afirma Rodrigo.
Mas o policial ganha mal (R$ 1.200 o salário
inicial) e muitas vezes acaba vendo nas situações irregulares oportunidades de
complementar a renda com o menor esforço possível. Essa postura, por sua vez,
aumenta a desconfiança da população nos agentes da lei, o que foi verificado semana
passada em pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O ex-PM Rodrigo
Nogueira concorda que os cidadãos cada vez desconfiam mais dos policiais
militares:
-- O carioca por vezes tem mais medo de
encontrar uma viatura da PM no breu da madrugada do que um bonde armado de
traficantes indo de um baile a outro. A visão que a população tem da PMERJ está
tão desgastada que é preciso um reset. Foram anos de abandono, negligência, de
chacinas como a do Borel, de Vigário, da Candelária, da Baixada. Em outros
estados a aceitação da população é maior, muito embora o modelo de
militarização das polícias esteja sendo cada vez mais questionado. Contudo, o
Rio não encontra paralelo quando o assunto é violência policial. Todos são
culpados,mas sobretudo as nossas autoridades políticfas, que perdem tempo
ocupadas nos seus cambalachos que se esquecem (ou não estão nem ai!) de quanta
gente está morrendo nessa guerra miserável, que nunca termina e não tem
vencedores. Só perdedores.
A recíproca também é verdadeira, observa
Rodrigo: "A população se torna o inimigo, ao homiziar o traficante, dar
guarida ao "157" e bater palmas ou dar de ombros quando um PM é
estralhaçado pelas balas dos bandidos. É um círculo vicioso: o cidadão não
confia no PM e o PM não confia no cidadão".
O ex-PM critica também a militarização da força
e a disparidade entre os processos de expulsão de um praça e de um oficial. No
caso do praça, ele lembra, a decisão é rápida, depois que o policial é
submetido a um conselho de disciplina. "É virtualmente impossível que o
oficial seja expulso", observa. Com mais liberdade para agir são os
oficiais quem incentivam os comandados a extorquirem mais e a matar mais,
conclui Rodrigo.
"Enquanto a Academia de oficiais continuar
formando líderes desqualificados, pretensiosos e, acima de tudo, aproveitadores
da ignorância dos praças, o ciclo de roubalheira continuará se renovando um dia
após o outro. Assassinos obedecendo a assassinos, ladrões prestando continência
a ladrões e depois com a mais deslavada demagogia o comandante-geral vem
crucificar um ou outro policial preso por cometer algum crime de repercussão na
mídia!", escreve Rafael.
No livro, o soldado Rafael não deixa pedra
sobre pedra da corporação. “Ingenuidade pensar que no Bope não tem ladrão.
Apenas o objetivo e a forma de escambo variam, pois enquanto o barriga azul
cata tudo que estiver pela frente, o caveira corre atrás da mochila (que leva o
dinheiro das bocas) e dos bicos (fuzis)”, escreve.
Apesar de descrever detalhes e histórias de
policiais com quem trabalhou – que podem vir a ser reconhecidos por ex-colegas
– Rodrigo diz que não há receio de que alguém seja descoberto:
-- Procurar indícios de crime em minha obra
seria como procurar uma machadinha num quarto fedorento de São Petersburgo ou
um pilão de cobre esquecido num bolso de algum capote velho – ironiza.
Com estilo dos melhores thrillers de suspense,
Rodrigo garante que não se autocensurou em nenhum momento, mas mantém sob
sigilo os nomes dos personagens da trama.
-- É óbvio que tratar de assuntos tão delicados
como os de meu livro há que se usar o bom senso, até porque existem outras
pessoas envolvidas e não é conveniente arrolá-las em dinâmicas e situações que gerem
embaraço. Não diria que me autocensurei, pois contei tudo. Entretanto, sempre
cuidando para preservar terceiros e esforçando-me para manter a integridae da
história. Onde isso não foi possível, o romancista entrou em ação e deu jeito
no problema – conta o ex-PM escritor.
Como conhece bem o sistema ao qual esteve
ligado durante cinco anos, Rodrigo pode mesmo salvar a pele com a decisão de
proteger nomes e locais exatos das histórias contadas no livro.
Leitor voraz que diz não apreciar literatura
policial, Rodrigo conta que desistiu de ler "Tropa de Elite", o livro
que transformou os integrantes do Bope em heróis, e "Sangue Azul",
outro livro sobre a corrupção da PM do Rio. "O texto muito pobre e a
inverossimilhança me desanimaram", critica.
Com uma citação de Nietzche (“Quem conhece
monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar
longamente para um abismo, ele também olha para dentro de você”), o livro tem
referências literárias difíceis de se achar no texto de um ex-PM que conseguiu
entrar para a faculdade de direito com o dinheiro ilegal, já que seu salário
era de apenas R$ 750,00. Ele cita, entre outros, H.G. Wells e Mário Puzzo. Aos
9 anos de idade, venceu um concurso de redação, cujo prêmio foi uma coleção
luxuosa das principais obras de Monteiro Lobato. Mais tarde, na Marinha, onde
quase chegou a ser cabo, recebeu o prêmio de melhor poesia num concurso, o que
por muito tempo foi motivo de piada no quartel.
-- Seria impossível eu escrever sem antes ter
tido contato com a literatura de verdade, com os textos que são a base do meu
pensamento. Os livros são, sem dúvida, instrumentos muito mais poderosos que
qualquer fuzil já produzido – filosofa.
(Extraído do Blog Repórter de Crime)Rodrigo, autor do livro, está preso pelos crimes cometidos |
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